Uma Oportunidade Inédita para o Diálogo
À beira da Floresta, a tela do computador já estava preparada, organizada para garantir que a tecnologia não falhasse. Com um copo de água e gelo ao meu lado, estava pronto para a conversa. Quando a câmera se acendeu, o silêncio foi quebrado pela figura de António Guterres, o secretário-geral da ONU, que representa as nações em um momento crítico para o planeta.
Alguns dias antes, havia recebido o convite de Jonathan Watts, coidealizador da SUMAÚMA e correspondente do The Guardian, para acompanhá-lo em uma entrevista com Guterres. Aceitei prontamente, ciente da importância de fazer as perguntas certas a um líder global. Desde que comecei minha trajetória jornalística em abril de 2024, por meio do programa Micélio da SUMAÚMA, escrevi sobre questões que vão desde minha relação com o Rio da minha aldeia até a devastação da floresta. Contudo, conversar com Guterres, mesmo que virtualmente, representava um marco significativo.
Mas que perguntas eu realmente faria?
Os minutos que se passaram entre o convite e a formulação das perguntas foram intensos e carregados de reflexão. Como indígena Xipai, cresci em uma aldeia situada na maior floresta tropical do mundo, a Amazônia. A conexão com a Floresta é visceral; ferir a natureza é, de alguma forma, ferir a nós mesmos. Assim, compreendi que minhas indagações precisariam refletir essa profunda relação. Para mim, a Floresta não é apenas uma parte do ambiente, mas tudo o que somos: as árvores, os rios e as pessoas que lá habitam.
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Fonte: olhardanoticia.com.br
O simbolismo dessa conversa não passou despercebido. A ONU me reconheceu como o primeiro jornalista indígena a entrevistar Guterres de forma exclusiva, um evento que ocorre dias antes da COP30, a maior conferência climática do mundo, que terá lugar em Belém, no coração da Amazônia. Essa disposição do secretário-geral para ouvir a voz indígena é poderosa, mas me perguntei: quantos outros líderes estão dispostos a fazer o mesmo? E por quanto tempo essa escuta durará? Embora não tenha tido tempo de fazer essa pergunta a Guterres, espero que a disposição para ouvir se estenda além da COP, por um tempo que realmente importe.
O Clamor da Floresta e a Realidade do Planeta
Como seria para Guterres observar, do seu ponto de vista, um planeta que está se tornando cada vez mais hostil? Eu sei como isso se sente na pele e na alma. Enquanto falava com ele, imaginei como seria levar Guterres ao meu território. A viagem, de voadeira, poderia durar entre três a seis dias, dependendo da época do ano. Ele teria que enfrentar as águas turbulentas do Rio Xingu e, depois, do Iriri, que muitas vezes se torna raso a ponto de precisar ser empurrado.
Nessa jornada, Guterres perceberia a alteração na cor das águas, um reflexo da poluição causada pelo garimpo ilegal, que transforma o Iriri em um lar para cianobactérias. Eu gostaria de perguntar se ele entende o que significa ver o rio de sua aldeia mudar.
Ao chegar, certamente ofereceríamos peixe, que poderia estar contaminado por mercúrio. E se ele passasse alguns dias ali, teria a oportunidade de ouvir as lideranças locais discutindo como defendemos nossa terra das constantes ameaças. Queria que ele presenciasse tudo isso em vez de ler sobre isso em relatórios ou mapas. O que ele diria após essa experiência?
Talvez respondesse de forma similar ao que compartilhou: “É indispensável que se ganhe consciência, a nível mundial, de que as comunidades indígenas são as defensoras da Natureza, são as defensoras do planeta…” E isso é verdade. Mas precisamos reconhecer que cuidamos de um planeta que muitos na sociedade não se esforçam para proteger. No Brasil, a ambição desmedida de pessoas não indígenas está invadindo nossas terras, resultando na morte de lideranças e na violência contra nossas comunidades. A dor é tão intensa que alguns não conseguem suportar e optam por acabar com suas vidas. Essa ingratidão por parte do mundo é tangível. No entanto, continuamos a lutar, pois enquanto houver Floresta, existiremos.
A Esperança e a Necessidade de Escuta
Na entrevista, perguntei a Guterres se ele compreendia o sentimento que a maioria dos povos indígenas tem em relação à natureza. Ou seja, que não nos separamos da Terra, que tudo está interligado. Ele pareceu entender a importância desse conceito, ressaltando a conexão entre natureza e humanidade. Porém, a maioria da população ainda não parece captar essa mensagem. A crença de que o ser humano está acima das outras formas de vida tem sido uma das principais causas da crise atual.
Guterres acredita que ainda estamos a tempo de mudar nossa relação com a natureza. Concordo, mas a janela de oportunidade está se fechando rapidamente. Se não agirmos, enfrentaremos um planeta inóspito.
Ele mencionou que o presidente Lula reconheceu que a COP30 precisa ser uma conferência da verdade, onde as vozes indígenas devem ser ouvidas de igual para igual. Essa é uma oportunidade valiosa. Contudo, se as negociações ignorarem as nossas vozes, ficará claro que esta COP não passa de uma farsa, permitindo a continuidade de práticas que afetam negativamente nossas vidas e nosso planeta.
Após 30 minutos, a conversa chegou ao fim. O eco daquela troca de ideias ressoará em mim. Em um mundo que frequentemente falha em ouvir, espero que Guterres tenha saído com a certeza de que as vozes dos rios e da floresta precisam ser ouvidas. Precisamos relembrar a urgência de agir para salvar não apenas a nós, mas a nossa casa, a Terra.
Acredito que é hora de relembrar que, como o rio, devemos persistir. O rio nunca para, ele avança, contorna obstáculos e flui. Em suas águas, habitam muitos seres; todos estão interconectados. Esquecer disso é ignorar que somos parte de algo maior. Se o rio continua a correr, mesmo ferido, então ainda há esperança para que a humanidade encontre, nas águas, a essência da resistência.